Memórias e Arquivos da Fábrica de Loiça de Sacavém

Julho 03 2012

 

Travessa oval em faiança, com cerca de 37,8 x 26,2 cm., apresentando uma variante da decoração habitualmente designada por Cantão Popular pintada à mão e aplicada a stencil (chapa recortada).

 

Este exemplar ilustra uma das inúmeras variantes conhecidas do Cantão Popular, neste caso uma variante produzida pela Companhia da Fábrica [a designação "fábricas" apenas foi instituída por escritura de 3 de Dezembro de 1929] Cerâmica Lusitânia, a única das grandes unidades industriais portuguesas de faiança que parece ter replicado este motivo.

 

Com efeito, a marca pintada e manuscrita existente nesta travessa, e reproduzida no final deste artigo, corresponde à primeira marca conhecida da fábrica Lusitânia, em Lisboa.

 

Uma marca que, sendo pintada e manuscrita, variava consoante a maior ou menor qualidade do pintor e a segurança do seu traço. Imediatamente abaixo pode ver-se uma variante dessa marca aplicada no tardoz de um prato semelhante a outro que já foi apresentado pelo autor do blog A Memória dos Descobrimentos na Cerâmica Portuguesa: http://memoriadosdescobrimentosnaceramica.blogspot.pt/2011/02/n60-prato-nau-portuguesa-fabrica-de.html.

 

 

Embora desde a sua fundação, em 1890, a fábrica Lusitânia tivesse estado particularmente ligada à produção de material cerâmico destinado à construção, e assim tivesse continuado logo após a venda que o casal Bessière efectuou em 1920, surgiu nesta nova fase uma clara intenção de entrar no segmento da loiça doméstica e decorativa.

 

É certamente nesse pressuposto que o artigo terceiro dos estatutos, estabelecidos por escritura de 28 de Dezembro de 1921, consagra o seguinte: "O seu objecto é a fabricação e venda de produtos cerâmicos, especialmente tejolo, telha, manilhas, produtos artísticos e similares (...)".


Mas logo em nova escritura, datada de 2  de Junho de 1925, esse artigo passava a ter diferente redação, clarificando esse objectivo – "O seu objecto é a fabricação e venda de produtos cerâmicos e especialmente telhas, tejolos, manilhas, azulejos, faianças, produtos refractários, ladrilhos, mosaicos, etc. (...)".

 

Talvez o período de transição entre as intenções expressas nos estatutos e a real capacidade de produzir faianças na CFCL explique os intrigantes aspectos patentes nesta travessa.

 

De facto, para além da marca pintada e manuscrita, esta travessa ostenta ainda uma marca impressa na pasta que se pode ver imediatamente a seguir.

 

 

A marca talvez não se apresente muito nítida nesta imagem, mas é perfeitamente legível na peça, à vista desarmada. Trata-se de um conjunto de dois numerais, "57" e "?", entre os quais surge, invertida, a palavra... SACAVEM!

 

Com efeito, esta travessa parece corresponder ao formato Hotel da FLS. Estaremos, portanto, perante um surpreendente caso de produção repartida que, tanto quanto se sabe, ainda não havia sido detectada ou divulgada.

 

Parece, assim, que a CFCL se terá socorrido inicialmente de alguns biscoitos, ou chacotas, da FLS, os quais seriam depois decorados e vidrados nas suas instalações. Esta tese está em consonância com o deficiente vidrado da travessa, que é particularmente visível nas três manchas claras existentes na ponte, as quais correspondem a três áreas não vidradas.

 

Através da consulta de correspondência arquivada no CDMJA sabe-se que a FLS estabeleceu colaboração com outras fábricas portuguesas em situações pontuais, tal como o intercâmbio de ouro para decoração com a VA, em períodos de escassez do produto, mas ainda não haviam sido encontrados documentos, ou peças, que comprovassem uma colaboração com a CFCL.

 

Este exemplar surge, assim, como um importante e inédito testemunho dessa possível colaboração.

 

Sobre características e outros exemplares de Cantão Popular veja-se o que foi escrito nos seguintes blogs:

 

≈  Arte, livros e velharias (http://artelivrosevelharias.blogspot.pt/2011/07/algumas-versoes-do-cantao-popular.html

≈  Lérias e Velharias (http://leriasrendasvelhariasdamaria.blogspot.pt/search/label/Cant%C3%A3o%20Popular%3A%20Amostragem

≈  Velharias (http://velhariasdoluis.blogspot.pt/search/label/faian%C3%A7a%3A%20cant%C3%A3o%20popular).

 

 

© MAFLS

publicado por blogdaruanove às 21:01

Muito interessante e esclarecedor este post, com o tipo de informação que eu gosto de encontrar acerca da nossa produção cerâmica, os períodos de fabrico e as marcas utilizadas. Não tinha conhecimento deste intercâmbio entre fábricas cá em Portugal, neste caso entre a Lusitânia e Sacavém, coisa que em Inglaterra foi comum.
Quanto ao facto de a Lusitânia ter produzido cantão popular , soube-o através do blogue Velharias, mas nunca encontrei nenhum exemplar destes e a decoração é bem bonita.
Cumprimentos
Maria Andrade a 4 de Julho de 2012 às 09:40

Viva Maria Andrade.

Intercâmbio terá existido, e recurso às mesmas fontes internacionais também - por exemplo, utilização comum de alguns formatos e decalcografias na FLS e na VA.

A questão é que em Inglaterra há centenas de publicações dedicadas ao estudo e divulgação da cerâmica, enquanto que em Portugal, particularmente sobre o século XX, há as que (não) há...

Embora não tanto como a FLS, é certo, a Lusitânia teve também uma produção diversificada na loiça doméstica e decorativa, quer em Lisboa quer em Coimbra. Não teve foi um leque tão alargado de vidrados e pastas, nem a colaboração de modeladores tão diversificados como os da FLS...

Saudações!

MAFLS

Boa tarde e obrigado desde já por todo imenso manancial de informação e cultura que nos fornece e nos torna a todos mais “ricos”. Bem-haja.
Em relação ao este texto em questão, quando refere:
“ Na exposição Portuguese Ceramics in the Art Deco Period, realizada nos EUA em 2005, exibiu-se uma figura de um gato, com marca semelhante, correspondente ao formato 167.”
Surgem-me duas questões, se me permite: - há registo dessa figura do gato, de que fala?; - há registos ou catálogo dessa mesma exposição?
Obrigado uma vez mais, votos de continuação de excelente trabalho.
António L.
Anónimo a 6 de Fevereiro de 2023 às 19:15

Boa tarde, A. L.
Existe registo fotográfico dessa peça - um gato negro, com olhos azuis e um laço verde, bem como existia, in illo tempore, um único exemplar desse catálogo, policopiado a partir de algumas provas, na Dana Library, Rutgers University-Newark.
Saudações.
blogdaruanove a 19 de Março de 2023 às 19:51

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