"(...) Dos móveis nem falar: uma caqueirada a que presidem umas pobres nogueiras disfarçadas de Henrique II. Que sei eu, uma família precisa de tanta coisa! Lá vêm umas visitas: «Que hão-de elas dizer, não temos dois pratos iguais!» Ou parentes da terra: «Quem sabe, talvez no testamento!» Ou os anos da Bibi, o namoro da Bibi – «Oxalá ele não repare!» E as amigas do colégio? «Uns estupores, vão contar tudo o que vêem!» Um horror de vida, nem você faz ideia, a fingir de independência, de conforto, de lar, que se arrasta vazia, friorenta, esburacada de insatisfações.
De que te serviu a ti, modesto guarda-livros (agora, por sinal, andas a vender à comissão, na praça) juntar uma limalha de economias de vinte anos (mas duvido que juntasses) para teres um arremedo de existência, numa casa desconfortável, com uivos de vento por todas as frinchas, uns cangalhos desconjuntados, um papagaio a gritar «ó da guarda» na sacada, e uma sopeira que te acaba de escavacar as «porcelanas» de Sacavém ao som do «Cochicho da Menina», porque a lâmpada de quinze velas não alumeia, senhor!
A tua mulher frequentou um colégio onde aprendeu lavores e a conjugar o verbo aimer (no futuro anterior, sobretudo) e teve os seus sonhos: por isso, nas faltas de criada, não pode ir ao mercado – «Esta vizinhança fala de tudo!» – e preferiria atirar-se da janela à rua, de cabeça para baixo, a ir levar o caixote do lixo à porta da escada, quando são horas de vir a carroça. É por isso que todas as noites, como um ladrão, tu vais pôr o embrulho do teu lixo pobre à porta duma vizinha, ou o despejas simplesmente num patamar ou no passeio, onde os gatos vêm fazer o seu festim de espinhas de carapau. (...)"
Excerto de Os de Cima e os de Baixo, da autoria de José Rodrigues Miguéis (1901-1980), publicado no seu livro É Proibido Apontar: Reflexões de um Burguês - I (1974). Este texto foi originalmente publicado em 1939, na revista Seara Nova, sofrendo depois alguns retoques até à sua primeira edição em volume, que ocorreu em 1964.
Contrastando com as sombrias e deprimentes observações de Miguéis, em alguns aspectos ainda tão actuais nos lusitanos e tristes dias que correm, apresenta-se hoje esta peça da FLS, decorada com um bem-humorado motivo, datável, de acordo com o seu formato e vidrado, das décadas de 1950 e 1960.
Note-se como este pequeno exemplar, com cerca de 9,1 cm. de diâmetro, ostenta uma primeira marca sob o vidrado translúcido e uma segunda marca, a dourado, sobre esse mesmo vidrado. Uma característica comum a várias peças semelhantes, como já foi ilustrado anteriormente: http://mfls.blogs.sapo.pt/11311.html .
Recorde-se, uma vez mais, que a próxima Assembleia Geral da Associação dos Amigos da Loiça de Sacavém decorrerá no sábado, dia 28 de Março de 2015, pelas 11h30m, no Museu de Cerâmica de Sacavém.
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