Memórias e Arquivos da Fábrica de Loiça de Sacavém

Março 26 2015

 

"(...) Dos móveis nem falar: uma caqueirada a que presidem umas pobres nogueiras disfarçadas de Henrique II. Que sei eu, uma família precisa de tanta coisa! Lá vêm umas visitas: «Que hão-de elas dizer, não temos dois pratos iguais!» Ou parentes da terra: «Quem sabe, talvez no testamento!» Ou os anos da Bibi, o namoro da Bibi – «Oxalá ele não repare!» E as amigas do colégio? «Uns estupores, vão contar tudo o que vêem!» Um horror de vida, nem você faz ideia, a fingir de independência, de conforto, de lar, que se arrasta vazia, friorenta, esburacada de insatisfações.

 

De que te serviu a ti, modesto guarda-livros (agora, por sinal, andas a vender à comissão, na praça) juntar uma limalha de economias de vinte anos (mas duvido que juntasses) para teres um arremedo de existência, numa casa desconfortável, com uivos de vento por todas as frinchas, uns cangalhos desconjuntados, um papagaio a gritar «ó da guarda» na sacada, e uma sopeira que te acaba de escavacar as «porcelanas» de Sacavém ao som do «Cochicho da Menina», porque a lâmpada de quinze velas não alumeia, senhor!

 

A tua mulher frequentou um colégio onde aprendeu lavores e a conjugar o verbo aimer (no futuro anterior, sobretudo) e teve os seus sonhos: por isso, nas faltas de criada, não pode ir ao mercado – «Esta vizinhança fala de tudo!» – e preferiria atirar-se da janela à rua, de cabeça para baixo, a ir levar o caixote do lixo à porta da escada, quando são horas de vir a carroça. É por isso que todas as noites, como um ladrão, tu vais pôr o embrulho do teu lixo pobre à porta duma vizinha, ou o despejas simplesmente num patamar ou no passeio, onde os gatos vêm fazer o seu festim de espinhas de carapau. (...)"

 

Excerto de Os de Cima e os de Baixo, da autoria de José Rodrigues Miguéis (1901-1980), publicado no seu livro É Proibido Apontar: Reflexões de um Burguês - I (1974). Este texto foi originalmente publicado em 1939, na revista Seara Nova, sofrendo depois alguns retoques até à sua primeira edição em volume, que ocorreu em 1964.

 

Contrastando com as sombrias e deprimentes observações de Miguéis, em alguns aspectos ainda tão actuais nos lusitanos e tristes dias que correm, apresenta-se hoje esta peça da FLS, decorada com um bem-humorado motivo, datável, de acordo com o seu formato e vidrado, das décadas de 1950 e 1960.

 

Note-se como este pequeno exemplar, com cerca de 9,1 cm. de diâmetro, ostenta uma primeira marca sob o vidrado translúcido e uma segunda marca, a dourado, sobre esse mesmo vidrado. Uma característica comum a várias peças semelhantes, como já foi ilustrado anteriormente: http://mfls.blogs.sapo.pt/11311.html .

 

Recorde-se, uma vez mais, que a próxima Assembleia Geral da Associação dos Amigos da Loiça de Sacavém decorrerá no sábado, dia 28 de Março de 2015, pelas 11h30m, no Museu de Cerâmica de Sacavém.

 

 

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Janeiro 14 2014

 

Gravura de Caetano Alberto da Silva (1843-1924).

 

"Foi quando se ouviram, coadas no ar macio e quente, umas badaladas alegres e alviçareiras. Mas ninguém se iludiu. Aquilo não era toque de missa ou baptizado. As badaladas eram do almofariz de bronze, que os Bravais tinham na varanda grande e que, batido pelo pilão nas bordas cinzeladas, produzia um som mais rico e poderoso que o sino da Igreja. Tocá-lo nos dias festivos de malhada ou vindima, para avisar a sua gente de que a comida estava pronta, constituía uma das prosápias do abastado lavrador. E com justa razão, que o tanger daquele traste, herdado de antigos avós, ouvia-se até Vilela Seca, quando o vento corria de feição.

 

Meia hora mais tarde, já toda a gente abancava à mesa, armada a toda a correnteza da varanda grande, com tábuas de castanho sobre toscos cavaletes adrede preparados, a poder de prego e martelo, pelo Moina Tamanqueiro, que era um ás em carpintaria do género forte e feio. Mas as toalhas eram de linho e a louça, da Fábrica de Sacavém, ainda exibia, esmaltada a azul escuro, a brava figura de Dom Fuas Roupinho, com o cavalo todo empinado na borda dum rochedo, e salvo do abismo por estupendo milagre da Virgem.

 

– Eh gente! agora é que vai ser malhar! – dizia o Ladral, enquanto lhe serviam uma enorme montanha de arroz.

 

– Santo nome de Deus! – fez um dos parceiros, admirando a pratada. – Parece a serra do Marão!

 

– Trabalha aqui melhor do que na eira! – acrescentou um terceiro.

 

– Deixem comer o homem! – proferiu o dono da casa. – E sirvam-se todos à vontade. Graças a Deus, há que bonde!."

 

Excerto do romance Fazenda Abandonada (1965), de Reis Ventura (1910-1988).

 

Embora haja notícia de que a FLS produziu pratos com imagem da Nossa Senhora da Nazaré, como peças de devoção e recordação da visita ao Sítio da Nazaré, não é muito provável que estes fossem adquiridos em tão grande quantidade com o fim de serem usados nas refeições.

 

O autor terá usado aqui de liberdade literária ou então terá sobreposto sincreticamente esta imagem do cavaleiro D. Fuas Roupinho ao motivo Estátua (Cavalinho), esse sim produzido como conjunto de jantar. 

 

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Dezembro 12 2011

Desenho de Alonso (pseudónimo de Joaquim Guilherme Santos Silva, 1871-1948).

 

" — Para lhe falar com o coração nas mãos, ia eu dizendo enquanto o entrevistador da "Modernia' analisava a minha casa de mastigar, devo confessar–lhe que foi só aos quatorze anos que a minha vocação literária se declarou. Tive, então, a minha primeira paixão e datam de então os meus primeiros versos...

— Isto foi comprado a prestações? indagou o homenzinho, apontando desdenhosamente para os meus tarécos.

— Não, senhor. Foi num leilão dos Transportes Maritimos, respondi eu.

E prossegui:

— Mas a minha personalidade de humorista só se revelou quando aos vinte e um anos fui ás sortes e me apresentei em pêlo diante duns senhores doutores. Ao olharem para o meu esquelêto puseram–se a rir de tal maneira que, num relance, compreendi o meu destino: fazer rir os meus semelhantes, mesmo sem tirar a camisola...

— Esta louça de Sacavem e muito ordinaria, comentava o homem, mirando as minhas faianças artisticas.

Eu, sem ligar importancia áquelas indiscretas considerações – ou desconsiderações, como lhes queiram chamar – continuei entusiasmadissimo:

— Como humorista afirmei–me rapidamente o primeiro no genero. A minha carreira não ha quem em Portugal a ignore e vivo cercado da admiração e do respeito de toda a gente alfabéta. Vou dar–lhe agora alguns detalhes acêrca da minha existencia de todos os dias...

— O que eu queria vêr era a cozinha, interrompeu o malcriadão...

 

 

Resignei–me e acompanhei–o. Enquanto ele fitava sorrindo os sete tachos, duas frigideiras e cinco cafeteiras que compõem a minha bataria volante, eu continuava: 

— Levanto–me, em geral, pelas onze e meia da madrugada. Tomo café com leite, como Alexandre Dumas. Espreguiço–me e, saltando do leito, dirijo–me ás minhas abluções, como Mahomet...

— A proposito: tem casa de banho?

— Ora essa! De banhissimo. E′ aqui...

E abri outra porta, por onde o entrevistador avançou sempre com o seu eterno sorriso de desdem.

— Lavado e barbeado, leio os jornais nacionais e estrangeiros. Em seguida almoço frugalmente, se bem que com suculencia. Depois durmo cinco horas para auxiliar a digestão. Ao acordar, trabalho dez minutos...

O homenzinho, nessa altura, voltou–se para mim e deixou cair dos labios, com a maior impertinencia:

— E que tenho eu com tudo isso?

Eu olhei o espantado e preguntei muito azedo já:

— Então o senhor não é o entrevistador da "Modernia", revista–magazine de luxo, que deseja saber como vivem na intimidade os grandes escritores nacionais?

— Não, senhor. Sou avaliador da companhia de seguros onde o cavalheiro queria segurar por trezentos contos meia duzia de tarécos que não chegam a valer trezentos escudos. Passe muito bem."

 

Excerto do conto Coisas que Só a Mim Acontecem, de André Brun (1881–1926), publicado no seu livro póstumo A Sogra do Barba Azul (1927).

  

 

 

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Agosto 24 2011

 

     

 

 

"Entraram para a taverna, e o vendeiro acendeu a luz.

O Isidro foi direito ao balcão e, nos grandes jeitos de paz  ou guerra, propôs:

– Para não gastar mais água na boca, racha-se a diferença, quer?

A cabeça pitoresca do taverneiro torceu-se duas vezes na mesura dos lances aventurosos, esbeiçou os lábios, anuiu. Apressou-se o almocreve a selar o contrato com uma jura honrada de negociante:

– É por ser para quem é, negro eu seja se tiro um puto real!

Deitou-se num prato um fio de azeite para prova. A faiança coloriu-se de oiro, doirado ficou o cavaleiro verde na verde historiação dos oleiros. As pessoas que estavam molharam o dedo e levaram à língua. E, entre tantos de palato gozoso, só o homem das vacas, para agradar ao senhor da taverna, pôs pecha:

– Sempre lhe digo que o outro não era lá grande fazenda.

O Isidro, que havia ganho uns cobres, complacentemente respondeu:

– Este não há-de ser pior. Mas tomara eu ter a alma tão pura como era o outro."

 

Passagem retirada do conto À Hora de Vésperas, inserido no volume intitulado Jardim das Tormentas (1913), de Aquilino Ribeiro (1885-1963).

 

O referido "cavaleiro verde" alude indubitavelmente ao motivo Estátua (Cavalinho), comum quer na produção da FLS quer na de outras fábricas portuguesas (cf. http://mfls.blogs.sapo.pt/tag/motivo+est%C3%A1tua).

 

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Julho 21 2011

     

 

"D. Nicéforo Fernandes ocupava a cabeceira da mesa e, modo de honrar meu pai, sentando o Dr. Temudo à direita, sentou-me a mim logo à sua esquerda, antes dele. De modo que eu ouvia, quer quisesse quer não, espremendo-me quanto podia, o cavaco que iam entretecendo os dois. E para mim, que nunca tal pensara, esse cavaco, sem me alhear do arroz de cabidela e do peixe de barrica, que as vareiras traziam à feira de S. Mateus, servido ali à farta em travessas de Sacavém, enlodado de molhanga, foi banqueteando por sua vez a minha curiosidade."

 

Passagem retirada do romance Cinco Reis de Gente (1948), de Aquilino Ribeiro (1885-1963), cuja acção decorre na Beira Alta durante a última década do século XIX.

 

Ao longo deste romance, onde se efectua uma revisitação da infância do autor, Aquilino revela particular enlevo pela cerâmica, fazendo referências ao azul de Saxe, à figura de um cão em faiança, à cerâmica de Delft e à obra de Palissy.

 

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Maio 12 2011

 

                     

 

 

"O meio dia era a hora da maré alta na casa de hóspedes. Os pratos voavam nas mãos da Ervilha, embora aliviada da grande travessa que ia circulando fumegante de mão em mão, onde cada um tirava a pitança da lei. Os comensais entravam em regra muito curiais, fazendo ao geral uma leve vénia ou lançando o bom dia, pela rapidez e a mesura actos de superior urbanidade. Dirigiam-se à gaveta comum a tirar o guardanapo numerado, ou ao aparador, onde estava encarapuçando a garrafa, os que bebiam vinho. Depois dum olhar, certeiro de pontaria, ao assento devoluto, avançavam sôbre o talher. A Ervilha acercava-se solerte a limpar as migalhas para depois pôr o prato com o menos de estreloiçada possível. D. Flávia não suportava criadas caqueiras, e ao mais pequeno boucelado da sua rica louça fazia-lha substituir por nova. Não raro se abria subscrição entre os comensais para pagar uma terrina rachada de Sacavém. A conversa ia decorrendo em smorzo sôbre coisas e loisas até a chegada do Hermano Bexiga. Em género de agitador não havia como êste. Adquirira tal arte, porventura, no manejo da espátula e das baguettes de vidro com que anaçava os componentes viscosos e irreconciliáveis de electuários e colírios."

 

Parágrafo retirado do romance Lápides Partidas (1945), de Aquilino Ribeiro (1885-1963), cuja maior parte da acção decorre em Lisboa nos meses que imediatamente antecedem o regicídio (1 de Fevereiro de 1908).

 

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