Desenho de Alonso (pseudónimo de Joaquim Guilherme Santos Silva, 1871-1948).
" — Para lhe falar com o coração nas mãos, ia eu dizendo enquanto o entrevistador da "Modernia' analisava a minha casa de mastigar, devo confessar–lhe que foi só aos quatorze anos que a minha vocação literária se declarou. Tive, então, a minha primeira paixão e datam de então os meus primeiros versos...
— Isto foi comprado a prestações? indagou o homenzinho, apontando desdenhosamente para os meus tarécos.
— Não, senhor. Foi num leilão dos Transportes Maritimos, respondi eu.
E prossegui:
— Mas a minha personalidade de humorista só se revelou quando aos vinte e um anos fui ás sortes e me apresentei em pêlo diante duns senhores doutores. Ao olharem para o meu esquelêto puseram–se a rir de tal maneira que, num relance, compreendi o meu destino: fazer rir os meus semelhantes, mesmo sem tirar a camisola...
— Esta louça de Sacavem e muito ordinaria, comentava o homem, mirando as minhas faianças artisticas.
Eu, sem ligar importancia áquelas indiscretas considerações – ou desconsiderações, como lhes queiram chamar – continuei entusiasmadissimo:
— Como humorista afirmei–me rapidamente o primeiro no genero. A minha carreira não ha quem em Portugal a ignore e vivo cercado da admiração e do respeito de toda a gente alfabéta. Vou dar–lhe agora alguns detalhes acêrca da minha existencia de todos os dias...
— O que eu queria vêr era a cozinha, interrompeu o malcriadão...
Resignei–me e acompanhei–o. Enquanto ele fitava sorrindo os sete tachos, duas frigideiras e cinco cafeteiras que compõem a minha bataria volante, eu continuava:
— Levanto–me, em geral, pelas onze e meia da madrugada. Tomo café com leite, como Alexandre Dumas. Espreguiço–me e, saltando do leito, dirijo–me ás minhas abluções, como Mahomet...
— A proposito: tem casa de banho?
— Ora essa! De banhissimo. E′ aqui...
E abri outra porta, por onde o entrevistador avançou sempre com o seu eterno sorriso de desdem.
— Lavado e barbeado, leio os jornais nacionais e estrangeiros. Em seguida almoço frugalmente, se bem que com suculencia. Depois durmo cinco horas para auxiliar a digestão. Ao acordar, trabalho dez minutos...
O homenzinho, nessa altura, voltou–se para mim e deixou cair dos labios, com a maior impertinencia:
— E que tenho eu com tudo isso?
Eu olhei o espantado e preguntei muito azedo já:
— Então o senhor não é o entrevistador da "Modernia", revista–magazine de luxo, que deseja saber como vivem na intimidade os grandes escritores nacionais?
— Não, senhor. Sou avaliador da companhia de seguros onde o cavalheiro queria segurar por trezentos contos meia duzia de tarécos que não chegam a valer trezentos escudos. Passe muito bem."
Excerto do conto Coisas que Só a Mim Acontecem, de André Brun (1881–1926), publicado no seu livro póstumo A Sogra do Barba Azul (1927).
© MAFLS